João 3:5 e o Significado de "Nascer da Água": Uma Análise Histórica e Teológica

A célebre conversa entre Jesus e Nicodemos registrada em João 3:5 contém uma das declarações mais discutidas da teologia cristã: “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus.” Essa passagem tem suscitado múltiplas interpretações ao longo da história da Igreja. Este texto explora a questão do que Jesus quis dizer com "nascer da água" — será que Ele se referia ao batismo cristão ou à regeneração espiritual em sentido mais abstrato?

Para responder a essa questão, é necessário considerar três fontes principais: 1) os escritos dos primeiros cristãos, também chamados de Pais da Igreja; 2) os reformadores protestantes; e 3) a interpretação pentecostal moderna, especialmente da Assembleia de Deus no Brasil, como ensinada pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD).


1. A Interpretação dos Primeiros Cristãos: o Batismo como Referência Direta

David Bercot, no livro “Que falem os primeiros cristãos”, afirma que os cristãos dos primeiros séculos interpretavam o “nascer da água” como uma referência clara ao batismo cristão. Isso é confirmado pela leitura de vários escritos patrísticos. Eis algumas citações significativas:

  • Justino Mártir (c. 100–165 d.C.), em sua Primeira Apologia, capítulo 61:

    "Pois no nosso nascimento anterior fomos gerados sem nosso próprio conhecimento ou consentimento... Mas para que não sejamos filhos da ignorância e da necessidade, mas da escolha e do conhecimento, e obtenhamos na água o perdão dos pecados anteriormente cometidos, é pronunciado sobre aquele que escolheu renascer e se arrependeu de seus pecados, o nome de Deus, o Pai..."

    Justino conecta claramente o novo nascimento com o batismo em água, como meio de perdão dos pecados e de transformação espiritual.

  • Ireneu de Lyon (c. 130–202 d.C.), em Contra Heresias (Livro I, Cap. 21.1):

    "Cristo veio para salvar todos, todos os que por Ele renascem para Deus — bebês, crianças, adolescentes, jovens e idosos. Portanto, Ele passou por todas essas idades, santificando cada uma..."

    Embora essa citação fale do renascimento de forma ampla, nos escritos de Ireneu fica evidente que o renascimento ocorre no batismo, como mostram outras partes da mesma obra.

  • Tertuliano (c. 155–240 d.C.), em Sobre o Batismo (cap. 12):

    “Feliz é a água, que limpa pecados e recebe o Espírito Santo.”

    Tertuliano enfatiza a água como meio eficaz de limpeza espiritual e veículo do Espírito Santo, ecoando as palavras de João 3:5.

  • Cipriano de Cartago (c. 200–258 d.C.), em Epístola 73, escreve:

    “O Senhor, ao vir, mostrou que ninguém pode alcançar a salvação senão aqueles que são batizados, e este é o nascimento da água e do Espírito..."

    Essa citação é uma das mais diretas no entendimento da Igreja Primitiva sobre João 3:5.

Esses testemunhos demonstram que os primeiros cristãos interpretavam o nascer da água como o batismo cristão. Para eles, o batismo era tanto símbolo quanto realidade espiritual, no qual se dava o novo nascimento necessário para a salvação.


2. Os Reformadores: Batismo e Palavra Como Meios da Regeneração

Durante a Reforma Protestante do século XVI, as interpretações começaram a se diversificar. Lutero, Calvino e outros reformadores valorizaram muito o batismo, mas enfatizaram também a fé e a Palavra de Deus como centrais na regeneração.

  • Martinho Lutero, no Catecismo Maior, parte quarta (Sobre o Batismo):

    “O batismo não é simples água, mas é a água compreendida no mandamento de Deus e ligada à Palavra de Deus.”

    Lutero via o batismo como um meio de graça, eficaz para regeneração. Ele cria que João 3:5 se referia ao batismo cristão:

    “A água não faz isso [salvar] sozinha, mas a Palavra de Deus que está com e ao lado da água, e a fé que confia nessa Palavra de Deus na água.”

  • João Calvino, em Institutas da Religião Cristã (Livro 4, cap. 16, seção 25):

    “Cristo declara que somos regenerados pelo batismo, não porque ele contenha em si o poder de regenerar... mas porque ele é um instrumento da graça de Deus.”

    E sobre João 3:5, Calvino comenta:

    “É indiscutível que Cristo aqui se refere ao batismo.”

Embora Calvino não atribuísse poder intrínseco à água, entendia que Deus operava por meio do batismo. Ele rejeitava o ritualismo vazio, mas não a eficácia sacramental quando acompanhada de fé.

Portanto, para os reformadores, o batismo era sim o “nascer da água”, mas esse ato só era eficaz quando acompanhado pela fé verdadeira.


3. A Interpretação Pentecostal (Assembleia de Deus - CPAD): Regeneração pela Palavra e o Espírito

A teologia pentecostal clássica, como ensina a Assembleia de Deus no Brasil (por meio da CPAD), interpreta João 3:5 de maneira diferente. Eles geralmente afirmam que "nascer da água" não se refere ao batismo, mas à regeneração espiritual, entendida como a ação do Espírito Santo por meio da Palavra de Deus.

O argumento baseia-se em passagens como:

  • Efésios 5:26 — “para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra.”

  • Tiago 1:18 — “Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade.”

  • 1 Pedro 1:23 — “...fostes regenerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus.”

Com base nisso, teólogos da CPAD argumentam que o "nascer da água" seria uma metáfora para o impacto purificador da Palavra no processo de novo nascimento.

Além disso, eles observam que, no diálogo com Nicodemos, Jesus parece estar usando uma linguagem figurada e espiritual, algo que o fariseu não compreendia plenamente (Jo 3:9-12).

A preocupação da tradição pentecostal é evitar qualquer confusão entre rito e salvação — ou seja, para essa linha doutrinária, ninguém é regenerado simplesmente por ser batizado. A regeneração ocorre quando a pessoa crê, arrepende-se e é transformada pelo Espírito Santo.


4. Mas e se a pessoa se batiza sem ter sido regenerada?

Esta é uma questão prática e teológica importante. Se o batismo é apenas um ritual externo, então pode ser realizado sem mudança interior. A posição dos primeiros cristãos e dos reformadores sobre isso é clara.

  • Para os Pais da Igreja, o batismo válido incluía uma disposição interior de arrependimento e fé. Tertuliano, por exemplo, dizia:

    “O batismo não deve ser apressado. Que os candidatos sejam primeiro instruídos, que confessem seus pecados, que passem pela disciplina...” (Sobre o Batismo, cap. 18)

  • Cipriano de Cartago enfatizava que o batismo, para ser eficaz, precisava estar ligado à fé genuína. Quando questionado sobre batismos feitos por hereges, ele respondeu que eles eram inválidos por não estarem acompanhados da verdadeira fé da Igreja.

  • Os Reformadores, como Calvino, diziam que o batismo é eficaz somente quando acompanhado da verdadeira fé. Calvino alertava contra o sacramentalismo vazio:

    “O sacramento sem a realidade que representa é como uma sombra sem substância.” (Institutas, 4.14.9)

Ou seja, todos concordam: sem arrependimento, fé e a obra do Espírito, o batismo é um ato externo sem poder regenerador.


5. Qual interpretação é mais provável?

À luz da exegese bíblica, da tradição histórica e da teologia sistemática, a interpretação mais coerente é que Jesus se referia sim ao batismo cristão, mas não como um ritual mágico. Ele falava de um novo nascimento que ocorre no contexto do batismo, onde há fé, arrependimento e a ação do Espírito.

A linguagem "nascer da água e do Espírito" remete a um evento único, não a dois distintos. Em toda a Igreja Primitiva, essa expressão era entendida como uma alusão ao batismo cristão, que era realizado com fé e em nome da Trindade.

Ao longo do tempo, para evitar o ritualismo vazio e a falsa segurança sacramental, muitos teólogos destacaram que o batismo sem fé é ineficaz. Portanto, é possível unir as duas interpretações: o novo nascimento ocorre quando uma pessoa crê e é batizada com arrependimento sincero e entrega a Cristo. A água simboliza e acompanha essa realidade espiritual.


Conclusão

O versículo de João 3:5 continua sendo um ponto de reflexão profunda sobre o novo nascimento. A interpretação da Igreja Primitiva é consistente com o contexto imediato e com a prática apostólica. Jesus não estava dando uma fórmula mágica, mas chamando Nicodemos — e todos nós — a uma experiência radical de transformação, simbolizada e selada no batismo, e realizada pela obra do Espírito Santo em nossos corações.

Nas palavras do apóstolo Pedro:

“O batismo, que agora também vos salva — não a remoção da sujeira do corpo, mas o apelo de uma boa consciência para com Deus — por meio da ressurreição de Jesus Cristo.” (1 Pedro 3:21)

Portanto, nascer da água e do Espírito é um convite a morrer para a velha vida, crer no Evangelho, e se entregar completamente a Deus, por meio de fé viva, arrependimento sincero e obediência visível ao mandamento de Cristo: “Quem crer e for batizado será salvo” (Marcos 16:16).


Referências:

  • Bíblia Sagrada (ARA, ACF e NVI)

  • Que falem os primeiros cristãos, David Bercot

  • Justino Mártir, Primeira Apologia, cap. 61

  • Tertuliano, Sobre o Batismo

  • Cipriano, Epístolas

  • João Calvino, Institutas da Religião Cristã

  • Martinho Lutero, Catecismo Maior

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